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Fala, Pesquisadora: Agricultura, Recursos Hídricos e Protagonismo Feminino na Agenda da COP30

Entrevista com professora Barbara Teruel

Por Lira Luz Benites Lazaro – pesquisadora CPTEn

A transição energética não pode mais ser pensada apenas como um projeto do setor de energia. Suas soluções, e também seus riscos, atravessam outros sistemas essenciais, como agricultura, água, uso da terra, alimentos e transporte. É nesse entrelaçamento de fatores que surge o nexo água-energia-alimentos (WEF nexus Water–Energy–Food Nexus), abordagem que oferece uma visão integrada para um desafio que é, por natureza, interdependente.

Em um país como o Brasil, onde o setor agropecuário consome a maior parte da água doce, ocupa vastos territórios e fornece a base da bioenergia nacional, planejar a produção de energia sem compreender o funcionamento da agricultura e da água é simplesmente insuficiente. Tecnologias como agricultura de precisão, sistemas agrofotovoltaicos, manejo hídrico inteligente e biocombustíveis avançados mostram que as fronteiras entre setores estão se dissolvendo e que as oportunidades estão justamente nas conexões.

Barbara Teruel, professora da Feagri e pesquisadora do CPTEn

Para aprofundar essa discussão, conversamos com a professora Barbara Teruel, pesquisadora do CPTEn e uma das principais especialistas em bioenergia, emissões agrícolas e tecnologias sustentáveis aplicadas ao campo no Brasil. Em entrevista, ela destaca que a agricultura — responsável por grande parte da economia nacional, mas também por impactos ambientais relevantes — ocupa hoje posição estratégica no futuro energético do país.

Bioenergia, Agricultura e o Desafio das Emissões: caminhos para uma transição integrada

No âmbito do Eixo 6 do CPTEn, dedicado à bioenergia e às energias renováveis, Teruel conduz pesquisas que buscam responder a questões estruturantes da transição energética brasileira: quão sustentável é a bioenergia produzida hoje? e como reduzir seus impactos em um setor que, simultaneamente, impulsiona a economia e pressiona os recursos naturais?

“Não há bioenergia sustentável sem uma agricultura capaz de reduzir emissões, racionalizar insumos e internsificar seu uso de tecnologias”

Segundo a pesquisadora, compreender essa dinâmica exige reconhecer que a agricultura ocupa uma posição ambígua e estratégica. De um lado, é altamente dependente de água, energia e insumos, contribuindo de maneira expressiva para as emissões de gases de efeito estufa (GEE). De outro, é justamente essa base produtiva que sustenta parte relevante da bioenergia nacional. Como ela observa, não há bioenergia sustentável sem uma agricultura capaz de reduzir emissões, racionalizar insumos e intensificar seu uso de tecnologias”.

Bioenergia, emissões e o papel da agricultura

No CPTEn, Barbara coordena estudos que abrangem desde a avaliação do desempenho de tratores movidos a biocombustíveis de nova geração até análises completas do ciclo de vida da produção de biodiesel. O foco recai, sobretudo, sobre a soja, atualmente a principal matéria-prima utilizada no Brasil. Para ela, o avanço da bioenergia depende de uma agricultura cada vez mais digitalizada: “a agricultura de precisão permite entender exatamente onde, quanto e quando aplicar insumos, reduzindo desperdícios e emissões, e isso altera completamente o impacto climático da cadeia”.

Entre as iniciativas em desenvolvimento, destacam-se:

  • Avaliação do desempenho de tratores agrícolas operando com 100% de biocombustíveis de nova geração, investigando consumo, emissões e eficiência em comparação com combustíveis fósseis.
  • Estudos de análise de ciclo de vida (ACV) da produção de biodiesel, com ênfase inicial na soja, buscando identificar os principais pontos de pressão ambiental.
  • Mapeamento de hotspots da cadeia produtiva, especialmente no que se refere ao uso de energia, insumos e emissões de GEE.

Esses estudos oferecem subsídios fundamentais para o desenvolvimento industrial, para a adoção de práticas rurais mais sustentáveis e para a formulação de políticas públicas baseadas em evidências.

No CPTEn, Bárbara coordena estudos que abrangem desde a avaliação do desempenho de tratores movidos a biocombustíveis de nova geração até análises completas do ciclo de vida da produção de biodiesel

O elo invisível entre água, energia e alimentos

A professora chama atenção para uma dimensão frequentemente negligenciada nos debates sobre transição energética: a profunda interdependência entre água, agricultura, energia e alimentos. Ela lembra que a agricultura responde por cerca de 70% da água doce consumida pela humanidade, e que grande parte desse uso é “invisível”, pois está incorporada aos produtos. Como destaca, “a água está embutida no alimento, na fibra, na ração e também no combustível que produzimos”.

Esse cenário revela que a transição energética não pode se limitar ao setor de energia; ela precisa incorporar uma leitura integrada dos sistemas produtivos. Avançar em sustentabilidade agrícola — e, por consequência, em bioenergia — depende de um conjunto de tecnologias e práticas que reduzam pressões sobre os recursos naturais. Entre elas, destacam-se:

  • agricultura de precisão, capaz de identificar com exatidão a necessidade de irrigação, adubação e defensivos;
  • monitoramento digital, que permite rastrear insumos, emissões e perdas ao longo da cadeia;
  • otimização de irrigação e manejo hídrico, reduzindo o consumo de água em contextos de crescente variabilidade climática;
  • tecnologias que aumentam eficiência e reduzem impactos, desde sensores no campo até sistemas de automação agrícola.

Esse olhar sistêmico é fundamental para compreender o papel da soja na transição energética brasileira. Sua expansão acelerada está diretamente associada à sua versatilidade: é alimento, é ração animal e, cada vez mais, é matriz importante para a produção de biocombustíveis. Essa multifuncionalidade, no entanto, traz dilemas. Como observa Barbara, não podemos ignorar que a soja está no centro das tensões entre bioenergia, segurança alimentar e uso da terra”.

É justamente nesse ponto que o debate sobre o nexo água-energia-alimento ganha potência: escolhas no campo energético repercutem inevitavelmente no sistema alimentar, no uso da água e até na dinâmica territorial. Por isso, a discussão sobre bioenergia — especialmente no caso brasileiro — precisa considerar riscos de expansão agrícola, pressões sobre áreas naturais e impactos indiretos como emissões associadas ao desmatamento.

Esses temas estão no centro das atenções em Belém, na COP30, onde o Brasil terá a oportunidade de apresentar ao mundo como integra, ou pretende integrar, energia, agricultura e recursos naturais em sua estratégia de transição.

Do campo às estradas: a transição energética também chega ao transporte

As pesquisas conduzidas pela equipe de Barbara não se limitam ao ambiente agrícola. À medida que a transição energética avança, seus impactos se estendem por toda a cadeia produtiva, inclusive pelo setor de transporte, que responde por uma parcela expressiva das emissões brasileiras. Em parceria com a Confederação Nacional do Transporte (CNT), o grupo da Unicamp está ampliando o escopo das investigações para entender como a mudança para combustíveis mais limpos altera o funcionamento de caminhões, ônibus e máquinas agrícolas.

Para Barbara, compreender esse movimento é essencial porque a transição energética não termina na porteira da fazenda; ela continua no transporte que leva insumos, alimentos e combustíveis pelo país”. Ela destaca que a mudança tecnológica não ocorre sem desafios: “a transição não é simples, nem trivial, ao mesmo tempo em que resolve problemas antigos, cria novos dilemas técnicos que precisam ser enfrentados com pesquisa, testes e inovação contínua”.

“A transição energética não termina na porteira da fazenda; ela continua no transporte que leva insumos, alimentos e combustíveis pelo país”

A pesquisadora reforça que o Brasil possui vantagens competitivas importantes. Entre elas, uma indústria de biocombustíveis consolidada e capacidade instalada de pesquisa aplicada. Porém, alerta que isso não reduz a complexidade do processo. “Precisamos garantir que a infraestrutura de transporte acompanhe o ritmo de descarbonização da agricultura e da indústria. De nada adianta produzir um biocombustível mais limpo se a frota não estiver preparada para utilizá-lo com eficiência e segurança”, aponta.

O avanço dessas pesquisas ajuda a construir uma ponte entre o campo e as estradas, mostrando que a transição energética exige coerência sistêmica: motores, combustíveis, cadeias agrícolas e logística precisam evoluir juntos para garantir que a descarbonização se materialize em toda a economia.

Mulheres na energia: mais presença, mais ciência, mais impacto

Além de sua atuação científica, a professora Bárbara integra o grupo Mulheres da Energia na COP30, iniciativa que busca ampliar a representatividade feminina nas negociações climáticas, nos painéis técnicos e nas atividades paralelas do evento. Para ela, a presença de mulheres na transição energética não é apenas uma questão de equidade, mas um fator decisivo para qualificar o debate e fortalecer a agenda científica brasileira. Como afirma, “a participação das mulheres cresce, mas exige visibilidade baseada em competência e contribuição — não apenas presença simbólica.”

O movimento, que reúne pesquisadoras, engenheiras, formuladoras de políticas, líderes comunitárias e profissionais da indústria, tem se consolidado como um espaço de articulação e apoio mútuo. Bárbara ressalta que essa diversidade de perfis é um diferencial estratégico: “mulheres trazem leituras distintas sobre uso da terra, tecnologias, impactos sociais e governança, e isso amplia a qualidade das soluções para a transição energética”.

Nos últimos anos, mais mulheres têm assumido posições de destaque em conferências internacionais — como palestrantes, moderadoras, especialistas técnicas e representantes de delegações. Essa mudança reflete uma compreensão crescente de que a transformação do setor energético demanda pluralidade de perspectivas, sobretudo em temas que articulam ciência, políticas públicas, agricultura e justiça climática.

“Incluir mulheres é incluir realidades que ficam de fora quando o debate é homogêneo; é expandir o olhar sobre o que significa uma transição justa”

A professora também lembra que a pauta de gênero está profundamente ligada aos desafios estruturais da transição energética. Mulheres, especialmente em zonas rurais e populações vulneráveis, são mais afetadas por mudanças climáticas, instabilidade hídrica e insegurança energética — e, ao mesmo tempo, são protagonistas em cadeias produtivas agrícolas, em iniciativas comunitárias de energia renovável e em projetos de adaptação. “Incluir mulheres é incluir realidades que ficam de fora quando o debate é homogêneo; é expandir o olhar sobre o que significa uma transição justa”, enfatiza.

Com a COP30 em Belém, o Brasil terá oportunidade de mostrar ao mundo como integra diversidade, ciência e inovação na construção de um futuro energético mais sustentável — e a presença de grupos como o Mulheres da Energia é parte fundamental desse movimento, ampliando vozes, qualificando o diálogo e fortalecendo a liderança feminina no campo climático.

COP30: esperança, desafios e o papel do Brasil

Para Barbara, entretanto, a conferência representa mais que uma prestação de contas: é uma oportunidade concreta de mostrar ao mundo o potencial científico e tecnológico do país. Como ela destaca, “nossa função é mostrar o que a ciência brasileira é capaz de fazer. Cada um contribui com o que pode, e isso se soma a um movimento maior.” Trata-se de uma visão que combina realismo e esperança, um otimismo pragmático ancorado no papel transformador da pesquisa aplicada.

A COP30 tende a ser um marco especialmente relevante para o Brasil porque reúne, em um mesmo espaço, os principais nós da transição energética nacional: energia, agricultura, água, uso do solo e justiça climática. É justamente nesse cruzamento que se concentram os maiores desafios — e também as maiores oportunidades. O país é simultaneamente grande produtor agrícola, potência em bioenergia, líder em matriz renovável e guardião de ecossistemas essenciais ao equilíbrio climático global. Poucas nações possuem essa combinação.

“A COP30 é a chance de mostrar como o Brasil pode integrar energia, agricultura e clima em uma agenda comum”

Nesse sentido, a conferência em Belém será tanto uma vitrine quanto um teste. Uma vitrine do que o Brasil já faz — em ciência, inovação, bioenergia, agricultura sustentável e governança climática — e um teste sobre sua capacidade de assumir, de fato, um papel de liderança global. Para Bárbara, o momento exige ambição e cooperação: “não há transição energética possível se os setores não conversarem entre si. E a COP30 é a chance de mostrar como o Brasil pode integrar energia, agricultura e clima em uma agenda comum.”

Ao final, o saldo da conferência dependerá da capacidade de transformar discursos em compromissos reais e compromissos em políticas efetivas. O Brasil tem condições de ser protagonista — mas esse protagonismo só se sustentará se vier acompanhado de coerência, transparência e integração entre os setores que moldam o futuro climático do país.