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Projeto na Amazônia une ciência moderna e saberes tradicionais

Programa leva tecnologia da energia solar para comunidades indígenas em São Gabriel da Cachoeira e será apresentado na COP30

Reportagem publicada no Jornal da Unicamp
Texto: Tote Nunes
Fotos: Lúcio Camargo / Alexandre Baré (acervo)
Edição de imagens: Paulo Cavalheri

 

Projeto sollar rio negro - centro
Reunião preparatória para o processo de formação do primeiro grupo de indígenas, em São Gabriel da Cachoeira (Foto: Alexandre Baré)

Seis anos depois da realização do primeiro vestibular indígena, a Unicamp dá um  importante passo para implementação do “Projeto Sollar Rio Negro” – um plano idealizado por indígenas pretende levar energia fotovoltaica para comunidades da região amazônica, território historicamente dependente do uso de geradores a diesel – equipamentos considerados caros, poluentes e que exigem logística complexa. O projeto quer preparar condições para uma transição de matriz energética justa, que garanta autonomia e seja ambientalmente adequada e inclusiva, com respeito aos saberes ancestrais, numa espécie de união entre o conhecimento tradicional e ciência moderna.

No início de outubro, representantes do Centro Paulista de Estudos da Transição Energética (CPTEn) e do Escritório Campus Sustentável da Unicamp estiveram em São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas – considerado o mais indígena dos municípios brasileiros – para a formatura da primeira turma de capacitação do Centro de Aprendizagem Indígena para a Transição Energética Justa. E esse trajetória será mostrada no dia 18 de novembro no Pavilhão Ensino Superior pela Ação Climática da COP30, em Belém, no Pará. 

Conhecido como “Cabeça do Cachorro”, São Gabriel da Cachoeira é o terceiro município brasileiro em extensão territorial. Possui a maior porcentagem de população indígena do país, representando 24 povos, com quatro línguas cooficiais além do português: Nheengatu, Tucano, Baniwa e Yanomami. A região amazônica conta com aproximadamente 1 milhão de pessoas sem acesso a energia e milhares de famílias com acesso limitado – quando os geradores fornecem energia em apenas parte do dia ou em dias específicos. 

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Indígenas em contato com os painéis de energia durante curso de formação realizado no Centro de Aprendizagem Indígena (Foto: Alexandre Baré)

Nesta primeira turma, foram capacitados 41 indígenas, que terão a tarefa de atuar como multiplicadores na implementação, instalação e manutenção de sistemas de energia solar fotovoltaica em suas comunidades – numa ação inédita e que conta com a participação da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn). 

Coordenador do programa Campus Sustentável da Unicamp, o professor Luiz Carlos Pereira da Silva conta que a 1ª turma de multiplicadores foi pensada originalmente para atender comunidades instaladas em São Gabriel da Cachoeira, mas o programa recebeu inscrições de indivíduos que vivem em outros municípios, como Santa Isabel e Barcelos. 

“Alguns dos que vieram para o curso viajaram cinco dias no rio até chegar a São Gabriel. Para voltar para casa, outros cinco dias”, conta o professor. “Ouvimos relatos, ainda, de gente que não veio porque só a viagem de ida poderia demorar mais de 10 dias”, continuou. O plano inicial era preparar 30 indígenas de São Gabriel, mas o curso recebeu 42 inscrições, com apenas uma pessoa não-indígena.

Para o curso, foram utilizados 24 painéis de energia fotovoltaica, 16 em telhado e o restante no solo. O transporte dos equipamentos de Manaus até a sede da Foirn, onde foram instalados, consumiu dois dias de viagem de barco. 

Segundo Pereira da Silva, foram realizados sete tipos de experimentos. Os indígenas aprenderam , por exemplo, a fazer a instalação de sistemas de bombeamento de água (a busca pela água é um serviço tradicionalmente realizado pelas mulheres) e conheceram o funcionamento dos sistemas adotados pelo programa federal “Luz para Todos” – tanto o off-grid (desconectado da rede de distribuição da concessionária de energia) quanto o on-grid (ligado à rede). Além disso, foram orientados sobre sistemas com bateria de chumbo e lítio – uma tecnologia nova, que, segundo o professor, em breve deverá chegar à região. Aprenderam, ainda, a montar e desmontar os sistemas e treinaram formas de consertar sistemas avariados.  A ideia é que possam voltar para suas comunidades e fazer o trabalho de multiplicar o conhecimento.

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Curso de formação no Centro de Aprendizagem Indígena para a Transição Energética Justa (Foto: Alexandre Baré)

Projeto Sollar Rio Negro

O “Projeto Sollar Rio Negro” nasceu da determinação do jovem indígena Arlindo Baré, um dos mais de 600 inscritos no primeiro vestibular indígena realizado pela Unicamp, em 2018. Baré conta que já planejava ser engenheiro elétrico e sonhava, um dia, poder voltar ao território Cué Cué Marabitanas, no alto Rio Negro, onde nasceu, levando energia limpa para as comunidades.

O “Sollar Rio Negro” é um projeto de iniciação científica de Baré, iniciado na disciplina “Grandes Temas da Atualidade: Direitos Humanos, Tecnologia e Sustentabilidade”.

A proposta se desdobrou na linha de pesquisa “Ciência indígena e justiça climática: transição energética justa nos Biomas”, credenciada como projeto da Bolsa de Assistência Social (BAS) da Unicamp, que integra doze estudantes indígenas de cinco etnias. O projeto está inserido no eixo 5 do CPTEn – Educação, formação e capacitação para a sustentabilidade socioambiental –, coordenado pela pesquisadora Danúsia Arantes.

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Danusia Arantes: consulta às comunidades fez a diferença (Foto: Lúcio Camargo)

Segundo Arantes, a adesão dos grupos indígenas ao projeto é decorrência da consulta às comunidades realizada por Baré ao longo dos últimos anos. “Esse trabalho [de Baré] foi tão importante, tão significativo, que, independente de termos mapeado ou não aquele território, as comunidades se manifestaram e vieram”, disse a pesquisadora. “

Quando falamos com representantes da Foirn para que a entidade escolhesse os indivíduos que iriam fazer a capacitação, eles trouxeram mais dois territórios, que não estavam no escopo original do projeto. A resposta foi tão boa, que os territórios acabaram aderindo espontaneamente”, contou.

Protocolos

O “Projeto Sollar Rio Negro” surgiu em 2021 e, segundo Baré, seguiu todos os protocolos definidos pela federação dos povos indígenas. O estudante conta que a primeira providência foi uma consulta direta às comunidades. “Não é porque sou indígena que posso chegar às comunidades da região e dizer o que elas têm de fazer. É preciso ouvir o que elas querem”, ensina.

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Indígenas durante curso de formação (Foto: Alexandre Baré)

Em seguida, Baré ouviu os “mais velhos” (pajés e líderes de aldeia), além de intelectuais indígenas. “Realizamos o 1º Encontro Internacional de Pesquisadores e Pesquisadoras Indígenas para ver se estávamos no caminho certo. Ouvimos gente como o Cacique Raoni [uma das lideranças indígenas do Brasil mais proeminentes] e Krenak [Aílton Krenak – líder indígena, ambientalista, filósofo, poeta, escritor e ativista brasileiro]”, contou.

Por fim, numa terceira fase, passou a trabalhar a ideia da confluência, para unir três conceitos: interdisciplinaridade, interculturalidade – afinal, o projeto abrange povos de diferentes etnias e pesquisadores não-indígenas de várias áreas do conhecimento – e ciência indígena. 

Um exemplo do uso de ciência indígena surgiu quando o grupo estava montando um dos sistemas. Os indígenas se manifestaram ao verificar que a base de um dos equipamentos era inteiramente de plástico. “Não queremos esse lixo de plástico por aqui. Será que não conseguimos substituir isso por madeira?”, sugeriu um aprendiz.

“Foi uma oportunidade para que fizéssemos uma provocação. A tecnologia do homem branco pode dialogar com a etnoengenharia”, disse. “A acariquara [madeira] poderia ser o suporte. Como é que nossos avós faziam para saber se uma madeira duraria 20, 30 anos? Esse é um ensinamento que nos foi transmitido ao longo de gerações”, explicou.  

A etnoengenharia envolve a aplicação da engenharia de forma interdisciplinar, considerando e integrando os conhecimentos, práticas e realidades socioculturais de grupos étnicos ou comunidades tradicionais. 

Metodologia 

Segundo Arantes, a formação teve de ser precedida por uma reestruturação na forma de transmissão do conhecimento. Também neste sentido, conta ela, a contribuição de Baré foi fundamental. A certa altura, os indígenas expressaram sua dificuldade de compreensão de termos técnicos – como dimensionamento, comissionamento, string box etc. 

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Processo de formação exigiu adaptação de metodologia e reconhecimento a saberes tradicionais (Foto: Alexandre Baré)

O dimensionamento é a fase inicial e teórica de um projeto. É o processo de cálculo e engenharia que define o tamanho e a configuração ideais do sistema para atender à necessidade energética. Baré explicou o conceito da seguinte forma: “Pense na plantação de mandioca que iremos transformar em farinha. A ideia do dimensionamento é medir quantas latas de farinha será preciso produzir por semana e calcular o quanto consumimos. Com isso, saberemos de quantas latas vamos precisar.”

Já o conceito de comissionamento – que é o processo de verificação para garantir que o sistema foi instalado corretamente e está operando de acordo com as especificações –, Baré relacionou-o a uma pescaria. “Nossos pais não nos ensinaram a pegar um caniço? Não nos mostraram que havia um anzol apropriado e a isca certa para pegar determinado peixe? Comissionamento é isso”, resumiu. 

“E o string box?”, perguntou uma aluna.  “Isso é só um sisteminha de segurança. Os homens brancos adoram inventar palavras difíceis”, respondeu Baré. 

Presente

Baré trata o professor Luiz Carlos Pereira da Silva como “parente” – a forma como um indígena chama outro indígena quando quer dizer que se trata de uma pessoa a quem quer bem –, muito além de uma eventual ligação de sangue. Parente é amigo, que merece respeito e proteção. E foi por conta dessa proximidade que Baré trouxe da região amazônica um colar de miçangas pretas, brancas e vermelhas que presenteou ao professor. “Esse colar, nessas cores, representa a cobra coral”, revelou.

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O professor Luiz Carlos da Silva (esq.) e o indígena Arlindo Baré: parente (Foto: Lúcio Camargo)

Segundo Baré, o professor se tornou um amigo porque o apoiou em momentos de maior dificuldade. “É muito difícil para nós que chegamos aqui [na Universidade] nos fazer entender. Não é todo mundo que consegue nos entender. No meu percurso até aqui, o pedaço mais difícil foi quando cheguei [na Universidade], porque as pessoas já construíram seu pensamento. Mas encontrei essas duas pessoas – Danúsia e Luiz Carlos –, que tornaram a Engenharia Elétrica um espaço acolhedor para nós”, revelou.

Para os Baré, entregar e receber um presente não é algo trivial. “O colar teve de ser abençoado por nossos mais velhos [pajés]. Além disso, a pessoa que vai recebê-lo tem de ser banhar no Rio Negro para se purificar”, revelou. 

Apoios

Baré também agradeceu aos apoios institucionais ao projeto – o Instituto Anabb, braço social da Associação Nacional dos Funcionários do Banco do Brasil, e o Instituto Vidas da Amazônia, que, através de parcerias com a Foirn, disponibilizaram recursos financeiros, humanos e equipamentos para viabilizar a implantação do Centro de aprendizagem indígena.

FOTO DA CAPA

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Indígenas durante curso de formação em São Gabriel da Cachoeira-Amazonas (Foto: Alexandre Baré)