A eletrificação de veículos é um caminho sem volta e que abre oportunidades econômicas e ambientais para o Brasil, especialmente no transporte público. A opinião é de Flávia Consoni, professora do Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT) do Instituto de Geociências (IG) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Há vários estudos que falam que o futuro vai ser elétrico”, destaca Consoni, que também é coordenadora do curso de Extensão em Mobilidade Elétrica.
Em entrevista para OVALE, a professora fala de ônibus elétricos, de São José dos Campos e do futuro da propulsão. Confira.
Como está o mercado de veículos elétricos no mundo e no Brasil? Quais países estão maios avançados?
Nos últimos 10 anos, esse mercado de veículos eletrificados teve um salto surpreendente. Sai dos anos de 2010 com poucas centenas de unidades para chegar a 40 milhões de veículos elétricos em 2023 e 2024, comercializados no mundo.
Essa conta traz os veículos que são aqueles conectados na tomada, com o abastecimento a partir da energia elétrica. Estamos falando em veículos que são puros a bateria ou os híbridos plugins. Já estamos falando hoje de um percentual de vendas em torno de 13%, que é um dado de 2022.
Os números certamente vão ampliar daqui para frente, porque 13% do total das vendas de veículos comercializados foram de veículos leves elétricos. Esses números tendem a ampliar porque nós temos uma série de políticas públicas implementadas, sobretudo em países mais ricos, que tem uma série de subsídios à aquisição do veículo elétrico e que ajuda esse mercado a se desenvolver.
E no Brasil?
Quando a gente fala em Brasil, os nossos números também são significativos e tem aumentado muito nos últimos anos, mas a gente tem uma característica no nosso mercado. A gente tem o crescimento dos veículos elétricos leves eletrificados. Mas nessa conta a gente coloca o híbrido.
Qual a definição de veículo híbrido?
É um veículo que tem uma maior eficiência energética, tem uma menor emissão, porque ele percorre mais com um litro de combustível, mas ele não tem essa conexão com a rede de energia elétrica. Eles representam o maior percentual das vendas no Brasil.
A gente olha para o nosso mercado e vê o país com dimensões continentais, com realidades muito distintas e trazer uma infraestrutura de recarga para todo o país vai ser um trabalho. Vai ser demorado e bastante caro. Então, o veículo elétrico híbrido acaba sendo uma alternativa para essas condições.
A gente tem outro elemento também que nós começamos a lançar no mercado que são os veículos híbridos flex. É uma tendência que a gente caminhe para essa direção. O flex híbrido é o que pode colocar gasolina ou etanol. No melhor dos cenários, a gente olhando para a descarbonização, é que a gente coloque o etanol. Daí você tem, de fato, um veículo elétrico híbrido com uma melhor resposta às questões ambientais.
Como vai a rede de recarga no país? Ela avança mais em quais regiões?
Acabei de orientar um trabalho de iniciação científica em que a gente faz um trabalho georreferenciado dos eletropostos no Brasil. Você tem uma expansão desses eletropostos em algumas vias de maior circulação, e isso é resultado de uma política pública bastante efetiva que foram os projetos de pesquisa e desenvolvimento da Aneel, do setor de energia, que estimulou a inserção de eletropostos no Brasil.
Mas o que a gente notou é que os eletropostos estão nas regiões de maior poder aquisitivo e eles estão bastante localizados em rodovias centrais do país. Há uma concentração em residências, locais e moradias que concentram o maior poder aquisitivo. O veículo elétrico que depende dos eletropostos ainda é muito caro no Brasil.
Na ausência de incentivos ao consumo, de fato, quem tem mais poder aquisitivo para adquirir é que compra, e não estou defendendo políticas de estímulo ao consumo no Brasil, porque acho que a gente tem uma série de outras demandas para serem atendidas, mas quando a gente olha para os mercados mais avançados que têm uma rede mais consolidada de veículos elétricos, uma rede de eletropostos, são os países que contam com políticas agressivas para a compra de um veículo elétrico.
Noruega é o mercado mais avançado no mundo. Um país com menos de 6 milhões de habitantes, um país rico, sem indústria automotiva local e o país decidiu que vai ter veículos eletrificados. Até 2025 eles pretendem não comercializar mais veículos movidos a combustível fóssil. Como consumidor, se eu vou comprar um carro e tenho tanta ajuda do governo, posso escolher pelo elétrico. Tem uma série de outros benefícios, como não pagar taxas de pedágio, não pagar estacionamento nos centros, que são bem caros nos países europeus. O consumidor soma tudo isso, paga a mesma coisa pelo carro e tem alguns outros benefícios que complementam a escolha.
No Brasil, a senhora acha que o transporte público coletivo pode dar o impulso que a eletrificação veicular precisa?
Essa é a minha grande aposta. Eu estudo a eletrificação nos últimos 10 anos. Quando a gente olha para a eletrificação dos meios de transporte, a gente tem que olhar para os diferentes modais que estão incluídos. A gente sempre fala muito do automóvel, por ter todo esse apelo. Mas quando falamos em eletrificados, temos que olhar para a micromobilidade, que são as bicicletas eletrificadas, que têm uma função social importantíssima nos centros urbanos, uma acessibilidade maior em termos de ampliar o acesso a esse modal.
Temos que falar dos caminhões, sobretudo dos caminhões de cidades, que são aqueles de menor porte e com uma função importante nessas entregas urbanas. A gente começa a ter algumas iniciativas de eletrificar aquelas carrocinhas do pessoal que coleta de resíduos nas cidades, material para reciclagem.
E claro o transporte urbano, os ônibus. Concordo que essa seria uma aposta importantíssima para o Brasil. Com muita segurança. Isso justificaria o Estado colocar recursos para subsidiar, porque quando você fala de ônibus tem uma abrangência muito maior e, sobretudo, uma questão social muito importante.
O ônibus eletrificado ajuda a gente a ter uma cidade muito mais acolhedora, mais silenciosa, com menos congestionamentos, o veículo reduz as emissões. Os ônibus são responsáveis pela emissão de materiais particulados e são altamente nocivos para a saúde pública. Nos centros urbanos em que há uma concentração maior de veículos, a eletrificação tem esse papel social importantíssimo.
E a gente tem que falar das pessoas que estão utilizando um ônibus eletrificado, que é muito mais confortável. Isso cria um atrativo adicional. E tem que falar também do motorista do ônibus. Se fizer essa pergunta para os que trabalham com as duas tecnologias, diesel e a elétrica, tenho certeza que vão preferir o elétrico. Seja pelo conforto da direção, na questão de não ter marchas, seja pelo conforto, do silêncio.
São José está licitando o novo sistema de transporte público, com 100% da frota de ônibus elétricos. Como a sra. avalia a iniciativa da cidade?
Eu orientei um mestrado que falava sobre a cidade e temos feito vários estudos sobre São José dos Campos. É uma cidade extremamente pioneira quando a gente fala em eletrificação. Ela se destaca e já fez uma lei própria para que o poder público pudesse empreender ações ligadas à eletrificação. Porque que isso é importante? Porque estamos falando de modais que são mais caros, então precisa ter uma institucionalidade por trás. São José começou com essa lei e com todo o incentivo ao compartilhamento de veículos. Você tem a Guarda Civil Municipal com as viaturas totalmente eletrificadas, com resultados ótimos.
Com relação aos ônibus, a cidade já tem a experiência de ter esses 12 ônibus elétricos circulando e agora dá esse salto para a eletrificação da frota toda. É super pioneiro e extremamente desafiador. Teve licitação que foi aberta e fechada, com questionamentos. E abre de novo. Não é só São José que sofre com isso. A gente tem a cidade de Campinas, onde fica a minha universidade, que também abriu uma licitação para 260 ônibus e fechou a concorrência e vai abrir de novo. Temos São Paulo que também está sofrendo muito com esse esforço da eletrificação.
Acho extremamente interessante a iniciativa, bastante arrojada. Porque você está trazendo rupturas para o Brasil, com cidades colocando ônibus elétricos. São José já está olhando para a frota toda. Essa é a saída.
Quais as vantagens do ônibus elétrico?
O que é um ônibus elétrico? Ele custa de duas a três vezes mais do que um ônibus normal. Ele tem essa barreira de custo inicial que é enorme. Tem vários estudos de análise da propriedade do veículo ao longo da sua vida que a soma final acaba sendo bastante positiva, em termos de custo para o operador. É um veículo que, na sua vida, tem praticamente uma manutenção zerada. O custo do combustível é muito mais barato e isso vai puxar todo o investimento na geração de energia renovável, mas esse desembolso inicial é muito alto, o que gera instabilidade e insegurança pata o operador. A gente está falando de uma tecnologia muito nova, com poucos ônibus elétricos no Brasil. Estamos aprendendo a fazer.
O modelo da cidade de Santiago, no Chile, inspira o de São José. É um bom modelo?
O que Santiago faz e o que a Colômbia também tem feito? O que os modelos de negócio mais exitosos para incentivar a aquisição do veículo elétrico trazem é a separação entre o proprietário do veículo e a operação. Você separa. Quem compra não é a pessoa que opera. Os operadores sabem fazer isso muito melhor do que as cidades. Então as cidades podem vir a adquirir, ou outros atores e investidores podem fazer a aquisição, e você separa.
O Chile avançou muito e eles têm uns 2.000 ônibus elétricos circulando e isso nos últimos cinco anos. O Chile começou e já disparou. Lá é um pouco diferente porque tem a responsabilidade que é compartilhada com o governo federal. Aqui no Brasil a responsabilidade pelo transporte público é do município, que não é tão rico quanto o Estado. Então isso também traz dificuldades para os municípios pagarem essa conta. No Chile, quem participa de forma muito forte nesse modelo de negócio do transporte público é uma empresa de energia, que é um parceiro forte nesse financiamento.
A gente precisa ser muito criativo quando está lidando com a eletrificação dos meios de transporte. Não dá para repetir os mesmos procedimentos que a gente tem para o veículo que já está rodando, a diesel, por exemplo, porque as contas não vão fechar. Então, isso é uma avenida de oportunidades para pensar em novos negócios.
Com veículos elétricos, a GCM de São José também é referência?
Supervisionei o trabalho do professor Márcio Almeida Có, do Instituto Federal do Espírito Santo, que passou um tempo fazendo pós-doutorado na Unicamp. Trabalhamos juntos e assinamos um artigo em inglês sobre eletrificação de veículos na frota pública, que foi apresentado na Escócia num evento sobre veículos elétricos neste ano. Será publicado agora em português na revista ‘O Setor Elétrico’.
Como no Espírito Santo também tem uma iniciativa de eletrificação de frotas, Márcio passou uma semana em São José levantando informações e estudando o caso da GCM (Guarda Civil Municipal), que usa veículos elétricos há cinco anos, tanto da perspectiva da operação como dos usuários desses carros. Foi bem interessante ouvir os guardas falando que conseguem fazer algumas aproximações na surdina, porque os carros são silenciosos. A gente mapeou os pontos positivos e negativos e tentamos descrever isso.
A nossa intenção com esse trabalho é mostrar essa experiência de eletrificação da frota pública, o papel do Estado, dos municípios em geral, que é muito importante em apresentar a tecnologia, em correr riscos que às vezes o setor privado não é muito afeito a correr. Compreender o que deu certo e o que não deu. São José manteve isso e, aliás, ampliou o número de veículos. A gente tentou fazer esse mapeamento que sirva para outras prefeituras que queiram eletrificar suas frotas.
A Embraer lidera o desenvolvimento do carro voador elétrico no mundo e já tem a maior parte das encomendas para o futuro veículo. Como a sra. vê esse projeto da Embraer, que coloca o país na fronteira do desenvolvimento em mobilidade?
Eu coordeno, lá na Unicamp, um curso de extensão em mobilidade elétrica. Em uma das edições, eu convidei a Embraer para falar do projeto. Ela criou uma startup para pensar no Evtol, que é o nome técnico para os veículos de pouso e decolagem vertical. E não é só Embraer, mas isso tem sido uma iniciativa grande de vários outros players do setor.
É bastante promissor, porque você consegue ter veículos que circulam no centros urbanos e são silenciosos, com uma série de vantagens associadas. Mas têm dificuldades também, como o custo, a bateria, até porque eles vão demandar baterias bastante robustas. Mas é um tema bastante promissor. Eu fico bastante satisfeita em acompanhar a iniciativa da Embraer, em São José dos Campos, que mais uma vez se coloca na fronteira desse desenvolvimento.
Vamos ouvir falar muito sobre os Evtols. Há muitas possibilidades, porque a gente entra na motivação. Porque a mudança? É porque a gente está discutindo no momento um contexto de emergência climática, eu nem falo mais em mudança. Nós temos uma responsabilidade de reduzir essas emissões globais. Esses veículos aéreos também são fontes de emissões. São compromissos que os países e as empresas assumem de reduzir as emissões de gases de efeito estufa.
As corporações estão trabalhando com a pauta ambiental e social. O Evtol é uma entrega de um veículo aéreo com zero emissão. São grandes forças que puxam a competitividade também, o posicionamento de mercado.
Os combustíveis fósseis dominaram a propulsão por mais de um século. A eletrificação vai dominar pelas próximas décadas ou já se pensa em outras tecnologias?
Já se pensa sim. Primeiro, os veículos elétricos são uma resposta à questão ambiental das emissões. A China está usando isso para desenvolver muito sua competência tecnológica, produtiva e ganhar mercados. São tecnologias que não têm o campo aberto para avançar, porque estão disputando o mercado. O veículo elétrico vai disputar mercado que já tem dono, com os veículos que estão aí. E isso traz dificuldades para se colocar no mercado.
Quando você fala em mobilidade elétrica, traz para o jogo muitos outros atores que antes não estavam e desloca também atores tradicionais. Então, isso é uma dificuldade. Por isso que a gente fala em transição. É um processo longo, que é coevolutivo e que vai sendo colocado aos poucos. Não será de um momento para o outro.
Essa mobilidade elétrica é um processo de transição. Em alguns mercados isso vai ser muito rápido, como na Noruega, Dinamarca, que são países que estão muito mais inclinados a promover rapidamente essa mudança. Mas no Brasil a gente vai ver processos que vão combinar outras soluções.
O que pode acontecer no Brasil?
Nós temos o biocombustível, o etanol, que é uma grande potência e vai representar uma mudança combinada. Temos que ter os veículos elétricos, o mercado está caminhando para isso e há vários estudos que falam que o futuro vai ser elétrico. Quando que é esse futuro? Não vai ser agora, mas a gente também não pode ficar totalmente alheio a esse desenvolvimento. Então a gente vai combinar algumas respostas.
No mais longo prazo, a gente vai olhar para o hidrogênio. O veículo a hidrogênio é uma grande aposta, mas não é uma tecnologia ainda pronta e temos que começar a desenvolver. Já temos pesquisas em curso e iniciativas no Brasil, com hidrogênio verde, que o país se coloca como uma grande potência. Nessa discussão energética, a gente precisa ver que o Brasil é um grande expoente dessa mudança. Temos uma matriz elétrica que é praticamente composta por renováveis, uma matriz energética que está muito à frente de outros países pela presença de renováveis. Esses têm que ser fatores para a gente se apropriar melhor disso.
Em 2023, a previsão é que se tenha no mundo 40 milhões de veículos leves automóveis elétricos. É bastante. São 27 milhões de veículos em 2022. São números grandes e que vão aumentar, mas eles vão conviver com outras soluções. No caso do Brasil, reforço essa hibridização com etanol. Se for para colocar a nossa cara, que a gente use as nossas expertises.
A entrevista é de Xandu Alves | reproduzida do jornal Ovale. Acesse o texto em sua primeira publicação, clicando aqui.
Inácio de Paula | Fotografia de capa | CPTEn